07 janeiro, 2006

Texto anotado recebido por mail.

Sons dos "rr" do meu país ou duas maneiras de pronunciar a palavra merda.


O DISCURSO OUE NUNCA FOI FEITO (jornal público 7/1/06)
O SOM DE PORTUGAL
FREDERICO LOURENÇO

Manuel Alegre, Mário Soares, Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã têm outra coisa em comum, além do facto de serem de esquerda. Algo de muito sonoro os distingue de Aníbal
Cavaco Silva. Trata-se do som da letra "r" em início de palavra (“revolução”) com grafia dupla no interior de um vocábulo ("terra") ou em sequências como "honra" e "guelra".
O ponto de articulação, do "r" dos candidatos de esquerda é apical: a ponta da língua rola contra o palato duro, um pouco atrás daquilo a que Homero chamou ”a barreira dos dentes".

No caso de Cavaco Silva, o "r" é articulado na garganta: é o som gutural de quem anuncia a intenção de escarrar. Entrou na nossa fonética por via do estrangeirismo: primeiro conquistou a classe alta por ser o “r” francês; a pouco e pouco, a classe média foi imitando; por fim, contaminou a classe proletária, por ser o "r" das telenovelas brasileiras. Hoje, o "r", de Cavaco Silva é o mais ouvido no nosso país.

Apesar do apreço que o Prof. Cavaco me merece, é pena[1] . Pois não há a menor dúvida de que o "r" dos candidatos de esquerda é o verdadeiro "r" de Portugal. É o mesmo "r" do castelhano (e do italiano, já agora). Em Espanha, as pessoas que emitem o "r" gutural (por defeito de fala ou afectação) tornam-se ridículas. No som da letra "r", que os nossos vizinhos hispânicos rolam extravagantemente, ouvimos todo o seu orgulho em serem espanhóis; ao passo que nós, tristes portugueses, fomos caindo na snobeira auto-amarfanhante de pensarmos que o "r" francês e brasileiro é mais urbano do que o atávico "r" ibérico, que soa rústico a ouvidos arrivistas.

No filme de João César Morteiro sobre Sophia de Mello Breyner Andresen, dá-se um fenómeno curioso. A voz de Sophia tinha compreensivelmente todos os tiques de prosódia e articulação fonética da classe social a que pertencia. No filme, quando ela fala em registo informal, articula o "r" francês, próprio de uma senhora bem que não quer empregar o mesmo "r' das criadas[2] . No entanto, quando Sophia declama os seus poemas, o "r" gutural de Cavaco Silva é cuidadosamente substituído pelo ´r´ apical de Manuel Alegre. O que terá levado Sophia a mudar, de ´r´ conforme assumia uma das suas duas personagens, a senhora fina e a poetisa? Só pode ter sido a consciência de que, apesar de menos chique o "r" apical é intrinsecamente mais eufónico é mais português do que o "r" gutural. Realidade que todos os cantores de fado sabem. E muitos actores. Mas até no teatro o “r" português está em vias de extinção. Na famosa encenação de Ricardo Pais da Castro de António Ferreira, a interpretação de Maria de Medeiros dividiu opiniões. As críticas foram injustas pois a Maria de Medeiros criou uma Inês de Castro deslumbrante. Mas dei razão a Cremilde Rosado Fernandes [3], que, com os seus ouvidos infalíveis de cravista[4] me disse “que pena a Maria de Medeiros ter aqueles horríveis ‘r´s guturais".

O efeito normalizador da televisão vai levar, mais cedo ou mais tarde, a que o autêntico ,"r" português (o "r" de Gil Vicente, Camões e Camilo) desapareça para sempre. Duvido que haja menores de vinte anos que o pronunciem ainda. O "r" hediondo do arrivismo vai vencer[5] . Agradeço, portanto, a portugueses tão diferentes como Marcelo Rebelo de Sousa, Jorge Silva MeIo, Manuel Maria Carrilho, Luís Miguel Cintra e muito especialmente aos quatro candidatos presidenciais de esquerda o facto de manterem ainda viva a pronúncia castiça do "r", que é, juntamente com o marulhar das ondas e o dedilhar da guitarra portuguesa, aquele som que dá verdade a Portugal.

Notas.

[1] Quando se trata alguém com apreço (e o substantivo não é inocente, neste caso) não se usa o último apelido (é o caso do tratamento por Engenheiro Correia pelo Sampaio); depois é pena não está claro se o autor tem pena do Cavaco pronunciar o `r´ de forma gutural ou se tem pena dele enquanto ser vivo.

[2] Apesar de ter casado com o moço de estrebaria de quem teve o rebento que nos obrigaram a conhecer (caso para dizer que é bestialmente parecido com o pai).

[3] Suspeito que seja da família do Professor de Clássicas e sócio fundador da CAP. Não há nada como conciliar a mente com o material (seja ele qual for). Deus o tenha em boa companhia.

[4] Talvez fosse bom o autor referir que empregou o substantivo no sentido musical e não no geral (pessoa que fabrica cravos, pregos próprios para ferraduras) para evitar confusões desnecessárias

[5] Talvez não Doutor. Talvez o “r” apical ainda seja mais frequente do que julga e, sobretudo, talvez o “r” hediondo ainda possa ser vencido. O senhor, que é tão erudito (trata os clássicos por tu) assine uma vez de cruz no sítio certo. Vai ver que até Portugal fica mais verdadeiro.